A Medida Provisória nº 1.103, de 15 de março de 2022 (“MP 1.103”), estabeleceu o Marco Legal da Securitização. O sistema de securitização, que era regido de modo disperso em diversas leis, passou, com a edição da MP 1.103, a ser tratado de uma forma única e coesa.

O Marco Legal da Securitização tratou especialmente dos seguintes aspectos: (i) definição de companhias securitizadoras e operações de securitização; (ii) competências da CVM para expedir regras sobre Certificados de Recebíveis (“CR”) e outros valores mobiliários; (iii) caráter escritural e de livre negociação dos CR; (iv) normas de direito cambial aplicadas aos CR; (v) possibilidade de emissões de séries e revolvência; (vi) captação de recursos no exterior; (vii) regime fiduciário e patrimonial; (viii) situações de falência ou insolvência, bem como disciplina de forma unificada aspectos relativos aos Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) e Imobiliários (CRI).

Ampliação e consolidação conceitual

Pode-se dizer que a grande novidade trazida pelo Marco Legal da Securitização foi a consolidação de regras e conceitos para as operações de securitização de recebíveis. Com isso, o regime anterior, caracterizado por disposições esparsas em determinadas leis e normas infralegais, é substituído por um conjunto de regras de aplicação ampla.

Nesse aspecto, um ponto de destaque trazido no Marco Legal da Securitização foi o fato de ser apresentada, no início de seu texto, a definição legal de securitização e das companhias securitizadoras. Acertadamente, a MP 1.103 trouxe um conceito amplo de securitização, sem criar categorias e denominações específicas. Isto é, a operação de securitização não precisa ser realizada por meio de um certificado de recebível, podendo ocorrer mediante outros títulos ou valores mobiliários. Ademais, não há limitação em relação à espécie de direito de creditório que poderá ser securitizado.

Regime fiduciário e segregação patrimonial

Outra novidade que deve trazer um impacto bastante positivo e significado é o fato de a MP 1.103 ter ampliado o regime fiduciário permitindo que as securitizadoras realizem a segregação patrimonial em cada operação de securitização.

Esse tipo de estrutura permitirá que uma única securitizadora realize diversas operações sem que o risco de uma das operações contamine as demais operações e/ou a própria securitizadora. O objetivo é trazer uma maior segurança aos investidores e à securitizadora, pois o risco de cada operação deverá estar restrito ao patrimônio em separado daquela operação. A ideia muito se assemelha ao patrimônio de afetação em operações imobiliárias de incorporação, em que eventuais dívidas da incorporadora ou problemas em outros empreendimentos não afetam o patrimônio designado para cada empreendimento.

Anteriormente, a segregação do patrimônio ocorria apenas em operações de CRI e CRA. A novidade trazida pelo Marco Legal da Securitização é qualquer operação de securitização poderá ser feita mediante essa estrutura. Com isso, a prática de realizar a abertura de uma companhia securitizadora para cada operação, como forma de segregar o risco, se torna desnecessária.

Ademais, outro aspecto relevante trazido pela MP 1.103 foi a redução do risco para operações estruturadas de securitização, uma vez que expressamente incluiu, por meio de seu art. 26, §4º, que a afetação ou a separação, a qualquer título, da companhia securitizadora produz efeitos em relação a quaisquer débitos, inclusive de inclusive de natureza fiscal, previdenciária ou trabalhista. Até a promulgação da MP 1.103, nos termos do art. 76 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, tal afetação ou separação não produzia efeitos em relação a tais débitos, sendo este um fator de risco inerente às operações de securitização.

Por fim, outro aspecto importante em relação ao regime fiduciário foi o fato de a MP 1.103 ter trazido de forma clara as atribuições da companhia securitizadora e do agente fiduciário. Fica claro que há a centralização da administração de cada patrimônio separado na figura da securitizadora, que deverá desempenhar atividades de caráter gerencial, mantendo registros contábeis e elaborando documentos financeiros. Por outro lado, o agente fiduciário cumpre um papel de defensor dos interesses dos investidores, fiscalizando a securitizadora.

Revolvência

O Marco Legal da Securitização amplia também a aplicação do instituto da revolvência. Sinteticamente, revolvência consiste na possibilidade de a securitizadora emitir um título, cujo prazo não coincida com o prazo de vencimento dos direitos creditórios que são o seu lastro. Com isso, a securitizadora terá liberdade para estruturar operações que envolvam a aquisição de direitos creditórios com prazos curtos de maneira sequencial.

Antes da MP 1.103, já era admitida a aplicação da revolvência em CRA, mas há vedação expressa para operações de CRI nos termos da Resolução CVM 60/21. Como o Marco Legal da Securitização possui ampla aplicação, a tendência é que toda e qualquer operação de securitização possa utilizar do mecanismo da revolvência.

Chamadas de Capital

O Marco Legal da Securitização trouxe um mecanismo de gestão de recursos muito eficiente para as operações de securitização. Trata-se da possibilidade de a securitizadora celebrar com os investidores compromissos de subscrição e integralização dos certificados ou títulos, de forma que os recursos dos investidores serão aportados de acordo com um determinado cronograma de aquisição de direitos creditórios. Trata-se de uma alteração que traz grande flexibilidade e dinamismo na estruturação de operações de securitização.

Reabertura da emissão

A MP 1.103 expressamente prevê a possibilidade de reabertura da emissão, por meio de aditamentos ao termo de securitização ou por meio da estruturação da emissão em diferentes classes e séries. O objetivo da norma é facultar à securitizadora a complementação do lastro, utilizando-se um único patrimônio em separado, de forma que a securitizadora possa se beneficiar de eventuais oportunidades de aquisição adicional de direitos creditórios ou em casos que exista necessidade de caixa para honrar pagamentos aos investidores e outros credores.

Dação em pagamento:

O Marco Legal da Securitização trouxe expressamente a hipótese da realização da dação em pagamento dos direitos creditórios aos investidores. Isso significa que, caso a operação de securitização se mostre inviável posteriormente, seja por insolvência da securitizadora ou por insuficiência do patrimônio em separado, os títulos poderão ser resgatados pelos investidores mediante a dação em pagamento dos direitos creditórios.

Variação cambial

Poderá constar no certificado de recebíveis cláusula de variação cambial, desde que cumpridos os seguintes requisitos: (i) os direitos creditórios que formam o lastro da securitização devem prever a variação cambial em suas cláusulas; (ii) o certificado de recebíveis seja destinado a investidores residentes ou domiciliados no exterior. Essa previsão era restrita aos CRA, mas a MP 1.103 estende a possibilidade da inserção desse tipo de cláusula em outros certificados de recebíveis.

Ofertas públicas com esforços restritos

Como mencionado o Marco Legal da Securitização amplificou o conceito da operação de securitização, não se restringindo aos clássicos certificados de recebíveis como os CRI e CRA. A Instrução CVM 400/03, que regula as ofertas públicas, pela natureza ampla do conceito de valor mobiliário, não prevê um rol taxativo de títulos que podem ser objeto de ofertas públicas. Por outro lado, a Instrução CVM 476/09, que rege operações de ofertas públicas com esforços restritos, isto é, destinadas a investidores profissionais, apresenta uma lista restrita de valores mobiliários que podem ser objeto desse tipo de oferta. Nessa lista, constam atualmente apenas os CRI e CRA. Para que seja possível realizar uma oferta pública com esforços restritos de outros títulos originados de operações de securitização, será necessário um posicionamento da CVM nesse sentido.

Comentários finais

Como se pode verificar nos tópicos acima, o Marco Legal da Securitização deve propiciar um grande crescimento no setor de operações de securitização de direitos creditórios. A MP 1.103 moderniza o regime jurídico das operações de securitização no Brasil conferindo, ao mesmo tempo, maior liberdade e flexibilidade às securitizadoras na estruturação de suas operações, e mecanismos de proteção aos investidores mediante o regime fiduciário.

A MP 1.103 tem validade de 60 (sessenta) dias após sua publicação no Diário Oficial da União, prazo este automaticamente prorrogável por igual período, caso não tenha, dentro deste prazo, sua votação encerrada em ambas as casas legislativas do Congresso Nacional. Se não convertida em lei dentro de tal período, a MP 1.103 perderá sua eficácia.